quarta-feira, 4 de julho de 2012

O campo do seminário

Metade dos anos 70. Estávamos no início dos nossos chamados anos "teen"  e se queríamos jogar futebol as opções existentes na época na nossa querida Ilha Terceira eram muito poucas. Em Angra fora os campos alcatroados do Liceu, o da Escola Industrial (terra com erva) , e o municipal de Angra (terra e pedrinha miúda que magoava) e se o zelador do campo não nos pegava e mandava embora aos berros, onde íamos parar ao relvão que era opção mas não tinha balizas, que eram normalmente marcadas com os sapatos, papelão, ou pedras que estivessem a mão. Mas havia uma opção que ficava bem mais perto de casa que era o campo do seminário. O Seminário era e é por assim dizer a Faculdade dos padres, e na época tinha bastante frequência. É um edifício grande, e com bastante espaço físico, localizado numa área nobre do centro da cidade, e nesse espaço físico existiam dois campos de futebol e um outro espaço para basquete e andebol. Os campos de futebol claro que estavam longe de terem as medidas oficiais, mas um deles era um pouco maior e dava pra jogar 8 contra oito, contando os guarda-redes. Claro que a entrada normalmente não era permitida a estranhos, mas algumas vezes os administradores fechavam os olhos e outras entravamos pelos muros. O piso desse campo era de terra com areia fina e pedrinhas, similar ao do campo de jogos da cidade e as balizas eram formadas de apenas três tubos pintados na cor castanha formando as duas barras laterais e o travessão. As linhas de campo eram feitas arrastando um pedaço de pau. formando um sulco no solo. Ali comecei meu trinamento mais a sério para guarda-redes. Ia eu e o João Santos (excelente meia armador, jogava muito bem com os dois pés, não foi a profissional por ter problemas no coração e ser asmático). Chegávamos do Liceu, e como morávamos perto um do outro e perto do Seminário, largávamos os livros em cima de qualquer lugar da casa, vestíamos o equipamento ( no meu caso como era praxe na época nos guarda-redes, camisola de  manga comprida, cotoveleiras e joelheiras e luvas que eram muito duras) pegávamos a bola e íamos os dois pro Seminário treinar, ele os chutes e eu as defesas. Ficávamos até anoitecer. Muitas vezes os seminaristas nos convidavam pra fazermos uma equipa pra jogar contra eles, aí convidávamos alguns amigos nossos e la disputávamos ardorosos desafios tendo um padre como árbitro ( o que não era muito legal, porque ora errava por desconhecer as regras do jogo, ou sempre era a favor do time da casa). Depois mais pessoas começaram a frequentar o campo e organizamos campeonatos, até que um belo dia, vimos que haviam começado obras para aumentar a altura dos muros, colocação de portões e arame farpado. E assim nosso campo ficou inacessível. Mas ainda ali jogamos 2 a 3 anos, no campo do seminário. Depois ingressei nos juniores do Lusitânia e conseguia treinar mais frequentemente e com orientação.

Fim de Ciclo (1998)


Escrevi este texto há alguns anos, por razão dum pedido amigo para descrever um momento importante na minha vida. Escolhi este mas poderiam ser muitos outros.


'É engraçado, lembro-me de quase todos os pormenores mas não me lembro se estava sol ou não. Era de dia, é a certeza que tenho. Os sonhos que me vou lembrando são iguais, falta luz. Não me lembro dum sonho radioso, com um sol brilhante, mas sempre um lusco-fusco constante. A memória parece que funciona da mesma forma.

Desta forma, desconhecendo a luminosidade do momento, estava eu sentado na esplanada, angustiado, de cerveja na mão, à espera da minha vez. Estava seguro do meu trabalho, do meu esforço de meses, mas é inevitável ter a insegurança de algo acontecer: um cataclismo inesperado, de ter escrito tudo numa linguagem inexplicável, de terem apontado todas a vírgulas fora do sítio, embirrar comigo. Afinal, foi uma decisão minha de ter avançado para a entrega e discussão sem a orientação dum professor. Mas assim era, esta luta constante entre lógica e ilógica, segurança e medo. E o medo prevalecia. Enfim, era necessário defender a minha ideia em pouco menos de uma hora, o verdadeiro teste que me esperava. Três professores virados para mim a discutir algo mais que um simples trabalho, a minha ideia, a minha competência. Não foi um trabalho de anos nem uma luta imensa mas era parte de mim. No fundo sentia que estava a defender o meu carácter perante aqueles três juízes. Mas a lógica dizia que não, é um relatório, apenas e só um relatório. Sempre a dúvida.

Não estava sozinho, o João estava a fazer-me companhia. Era bom rapaz o João, estava no 3ºano, era 4 anos mais novo do que eu. Fomos colegas de grupo em estatística devido ao facto de ter arrastado a cadeira quase até ao fim do meu percurso estudantil. Ouvia as minhas lamúrias e tentava animar-me, assim o fez até chegar o momento de ir para a sala. Nunca lhe agradeci por isso, não por ingratidão mas por só passados anos ter notado o seu gesto, de simples amizade.

Para mim, a ansiedade da véspera é sempre mais intensa que a ocorrência em si. Este foi um momento que reforçou esta ideia. O evento em si foi banal, umas perguntas, umas rasteiras, respostas à altura, umas críticas e passados 20 minutos estava acabado. Não houve glorificações, nem críticas vorazes. Tem piada, após tanta agonia, estando na frente dos professores, a ansiedade parou e estava seguro de mim próprio. Perguntei, na saída, se era suficiente para passar, desconhecendo na altura que teria de esperar uns dias pela sua publicação. Negada a resposta, teria de esperar. Outra vez. Saí da sala enquanto os professores discutiam o meu futuro próximo. Decido ficar um bocadinho no átrio, abre-se a porta, uma professora olha para mim e faz o sinal que estava tudo bem.

Acabou-se. Nesse momento fecha um ciclo da minha vida. Deixo de ser estudante. Com um gesto apenas. O objectivo pelo qual trabalhei tinha sido atingido e a alegria e alívio foram imensos. Celebrei apenas com a minha irmã e meu cunhado. Mas ao mesmo tempo, uma espécie de vazio instalou-se. Por incrível que pareça aquele trabalho fez parte da minha rotina diária durante dois anos e estava acabado, era passado, faz parte duma etapa que terminou. Uma nova vida tinha começado para mim.'